A atuação política cristã
Por Andressa Pellanda e Jéssica Castro
Em tempos de descontentamentos políticos – seja com o governo, seja com a inflação, seja com a corrupção, seja com o que for -, é tempo de olhar para nossa posição no mundo e como estamos exercendo não só nossa cidadania, mas nosso papel como cristãos. Afinal, a sociedade não pode e não é construída somente pelas mãos de alguns, mas de todos nós.
Segundo Dalmo Dallari, jurista brasileiro, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e professor catedrático da UNESCO na cadeira de “Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância”, a cidadania “expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo“. Nada mais atual, nada mais pertinente. Ele coloca, com todas as palavras, que a cidadania não nos é dada, ela é construída e conquistada a partir da nossa capacidade de organização, participação e intervenção social.
Não será preciso discorrer aqui sobre os motivos pelos quais devemos nos dedicar à nossa atuação cidadã, basta olhar para nosso contexto social, político e econômico para ver os resultados da falta dessa prática. Atentemo-nos, principalmente, ao porquê da atuação política cristã na sociedade – observe que, ao tratar de “atuação política”, coloca-se o termo de forma mais ampla e não reduzido aos cargos políticos. A essencialidade da ação cristã na sociedade está, grosso modo, na busca concreta do Reino de Deus.
Jesus, ao falar do Reino de Deus, nos coloca a importância da abertura ao Amor, à reconciliação, à fraternidade universal e à vida em plenitude. E esse Reino de Deus não está somente num momento futuro, como também está em nosso meio: “Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está no meio de vós” (cf. Lc 17,21). O Reino de Deus significa algo de muito concreto: significa Boa Nova da Salvação para os pobres, a luz para os cegos, o andar direito para os coxos, a saúde para os leprosos, o perdão dos pecados para os contritos, a misericórdia para os transgressores da Lei, a libertação para os oprimidos e a vida para os mortos (cf. Lc 4,16-21; Mt 8,16-17;11,2-6).
O Reino de Deus, proclamado por Jesus, conquanto não se reduza à política, possui uma dimensão política, porque insere a ideia de modificação global e estrutural dos fundamentos da velha ordem. Jesus proclamou a mudança radical da estratificação social do contexto sociopolítico de sua época: no Reino, os humildes serão mestres (Mt 5,19; 11,25); foram acolhidos as mulheres e os pequenos (Mc 10,13-16; Lc 13,10-13), os hereges e os samaritanos (Lc 17, 11,19; Jo 4,4-42), os marginalizados da sociedade, como eram os pobres, os doentes, os leprosos. Aos que se escandalizavam do seu procedimento disse: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores. Os sãos não precisam de médico” (Mc 2,17).
E como atuar, de forma concreta, para a realização do Reino de Deus por entre nós? De nada bastam as indignações isoladas, as caridades interesseiras. Primeiramente, é necessário que algumas abstenções façam parte do comportamento do cristão em sua esfera política. De forma mais clara, discursos de ódio e proposições ineficazes ou que careçam de fundamento acabam por ser politicamente inócuos e, portanto, geram um gasto de energia que não traz resultados sociais mas, muito pelo contrário, são contraproducentes.
No livro de Gálatas 6:10 encontramos o primeiro passo: “Por isso, enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem todos”. Esse versículo expõe de forma clara que o cristão deve fazer bem e, através dele, podemos depreender a importância e a eficácia do exemplo. O cristão, ao se deixar contagiar por atitudes que tenham como fim principal o bem comum, se torna uma referência para aqueles que também se interessam em ampliar sua participação política.
Um de nossos grandes exemplos de atuação política cristã são as pastorais da Igreja*. Elas atuam de forma importante através de atos de caridade e de atendimento aos marginalizados e àqueles que estão na base da pirâmide social, onde vemos um fosso de desigualdade que os separa de uma vida em plenitude. Mas elas não se limitam ao assistencialismo. Elas atuam também onde estão os tomadores de decisão política, de forma a incidir para que verdadeiras políticas públicas sejam criadas objetivando de forma precípua a justiça social e a igualdade substancial, o que concretizaria em nosso meio o “Reino de Deus”.
Vale lembrar que, para além das atuações das Pastorais Sociais, cada cristão tem a possibilidade de influir politicamente na sociedade. Então, qual seria o papel do cristão?
Resta por óbvio que a nossa atuação na esfera política não se limita às questões do exemplo, do assistencialismo, da interlocução direta com nossos representantes e, muito menos, que exista um roteiro pronto e acabado de como a nossa participação deve se dar para ser eficaz. Cabe a cada um de nós refletir sobre e buscar formas possíveis de influência e fiscalização do Poder Público, dos mais próximos representantes políticos aos mais distantes.
Nessa linha, em tempos de descontentamento político, precisamos olhar para nós mesmos e rever nossa atuação enquanto cidadãos e enquanto cristãos. Que parte me cabe que não faço? Qual a minha contribuição para que as coisas estejam como estão e não como deveriam estar? O que posso fazer para mudar? Coríntios I, capítulo 13 nos lembra muito bem no que devemos nos espelhar:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver Amor, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.
Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver Amor não sou nada.
Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver Amor, de nada valeria!
O Amor é paciente, o Amor é bondoso. Não tem inveja. O Amor não é orgulhoso. Não é arrogante.
Nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O Amor jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará.
A nossa ciência é parcial, a nossa profecia é imperfeita.
Quando chegar o que é perfeito, o imperfeito desaparecerá.
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança.
Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido.
Por ora subsistem a fé, a esperança e o Amor – as três. Porém, a maior delas é o Amor. 1 Coríntios 13:1-13
*Os próximos textos desta coluna Fé & Vida deverão ser dedicados a tratar de assuntos relevantes no contexto da atuação das Pastorais Sociais da Igreja no Brasil. Quem sabe alguma não inspire para imergir em alguma causa política?